A organização humanitária "Save the Children" revelou que radicais islâmicos, responsáveis pelo conflito armado na região de Cabo Delgado, em Moçambique, estão a decapitar crianças. A organização não-governamental descreve cenário de terror.
Desde 2017 que radicais islâmicos, com ligação ao autoproclamado Estado Islâmico, estão a atacar as comunidades no norte de Moçambique com o intuito de dominar aquela zona do país. A situação deteriorou-se severamente durante os últimos 12 meses, com novos ataques extremamente violentos a várias aldeias.
A organização "Save the Children", que está em Moçambique, falou com algumas famílias deslocadas, que revelaram como os militantes islâmicos assassinaram brutalmente adultos, mas também crianças.
"Naquela noite a nossa aldeia foi atacada e as casas foram queimadas. Quando tudo começou, eu estava em casa com os meus quatro filhos. Tentámos fugir para a floresta, mas eles levaram o meu filho mais velho e decapitaram-no. Não podíamos fazer nada porque também seríamos mortos", descreveu uma mãe de 28 anos.
Também o filho de Amélia, nome fictício, morreu às mãos dos radicais com apenas 11 anos. "Depois de o meu filho de 11 anos ter sido morto, compreendemos que já não era seguro ficar na minha aldeia. Fugimos para a casa do meu pai noutra aldeia, mas alguns dias depois os ataques começaram lá também. Eu, o meu pai e as crianças passámos cinco dias a comer bananas verdes e a beber água de bananeira até termos o transporte que nos trouxe até aqui", contou a mulher de 29 anos.
A escalada de violência que se vive na região atirou milhares de famílias para a pobreza, ficaram sem casas e sem alimentos para sobreviver. Segundo os dados da organização "Save the Children", quase um milhão de pessoas enfrentam fome severa como resultado direto deste conflito, incluindo as pessoas deslocadas e as comunidades de acolhimento. A crise humanitária em Cabo Delgado já provocou mais de 2500 mortes e 670 mil pessoas deslocadas.
O diretor da associação em Moçambique, Chance Briggs, admitiu estar "enojado" com os relatos de ataques a crianças e pediu o fim do conflito armado.
"Esta violência tem de acabar, e as famílias deslocadas precisam de ser apoiadas à medida que encontram o seu rumo e recuperam do trauma", afirmou Briggs. O diretor apelou, ainda, à solidariedade. "A ajuda humanitária é desesperadamente necessária, mas não há doadores suficientes que tenham dado prioridade à assistência àqueles que perderam tudo, mesmo os seus filhos", rematou.
A "Save the Children" já conseguiu ajudar mais de 70 mil pessoas, incluindo 50 mil crianças, através de educação, proteção infantil, saúde e fornecimento de água e saneamento.
O conflito armado de Cabo Delgado
A violência que assombra a província de Cabo Delgado começou em outubro de 2017 e parece não ter fim vista. A organização "Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos" (ACLED, sigla em inglês) registou em 2020 "1600 fatalidades na província (Cabo Delgado), três vezes mais do que em 2019", uma tendência que agrava a insegurança sentida na região.
A ONG norte-americana que se dedica a recolher e a analisar dados sobre violência em grande parte do mundo considerou a insurgência em Cabo Delgado um dos dez conflitos mais preocupantes de 2021.
Acredita-se que por trás destes ataques esteja a conjugação de vários interesses: económicos, étnicos e religiosos. De acordo com a BBC, um líder terrorista admitiu, num vídeo, que estavam a ocupar as cidades para mostrar as injustiças cometidas pelo governo, que segundo ele beneficia os patrões e humilha os pobres. O radical falou ainda do Islão e do seu desejo de um "governo islâmico, não um governo de descrentes", mas também citou alegados abusos por parte dos militares de Moçambique.
O facto de Cabo Delgado ser uma região rica em pedras preciosas e o local onde avança o maior investimento privado de África para extração de gás natural também pode estar na origem destes ataques terroristas. Além de que, segundo diversos relatórios internacionais, a costa da província faz parte de uma das principais rotas de tráfico de droga mundiais.
Chance Briggs, da "Save the Children", afirmou à BBC que é difícil perceber quais são as motivações exatas dos rebeldes. "O que vemos é que os insurgentes estão a tentar expulsar as pessoas. Eles capturam os jovens para se juntarem a eles como recrutas e, se recusarem, são mortos e por vezes decapitados", relatou Briggs.
Os ataques cada vez mais sofisticados, o número crescente de deslocados internos e também a pandemia de covid-19 expuseram as limitações de capacidade do governo moçambicano, que tem dado uma fraca resposta governamental no combate aos insurgentes.
Moçambique é um dos países mais pobres do continente africano, por isso a ação das organizações humanitárias têm sido determinante no auxílio da população. Em novembro de 2020, a chefe da Organização Internacional para as Migrações (OIM) no país, Laura Tomm-Bonde, afirmou que os deslocamentos estavam a aumentar à medida que os ataques continuavam. Admitiu ainda a fragilidade dos recursos disponíveis, que "não cobrem as extensas necessidades humanitárias das famílias que chegam sem nada".
Laura Tomm-Bonde pediu ainda "mais assistência para atender as necessidades" das populações, que sobrecarregam as organizações humanitárias no país.
As autoridades de Maputo têm recorrido a empresas privadas de segurança para combater os terroristas. Entretanto, países da África Austral, da União Europeia e os Estados Unidos já disponibilizaram ajuda. Na segunda-feira, funcionários da embaixada dos EUA disseram que os militares americanos passariam dois meses a treinar soldados em Moçambique, bem como a fornecer "equipamento médico e de comunicações".