Intelectualmente brilhante, mas sem o carisma das massas, antecessor e predecessor de dois dos papas mais aclamados da história, Joseph Ratzinger, Benedictus XVI, morreu, hoje, aos 95 anos de idade, no mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano, onde vivia em retiro desde que resignou, em 2013, a um pontificado de oito anos.
Num ministério marcado por escândalos como o dos abusos sexuais na Igreja e de corrupção no Vaticano. E de posições conservadoras em relação ao celibato dos sacerdotes e ao casamento homossexual, quando, enquanto teólogo, foi dos impulsionadores do Concílio Vaticano II. Mas também de afirmação do diálogo entre a fé e a razão e da busca pela verdade, ancorado no seu "companheiro de viagem", Santo Agostinho.
A 11 de fevereiro de 2013, Dia Mundial do Doente, instituído pelo Papa João Paulo II, Bento XVI anunciava, em Consistório, para estupefação dos cardeais, a sua renúncia ao pontificado. Imageticamente desenhada sob um raio que, naquela noite, atingiria a Basílica de São Pedro. O último Papa a resignar havia sido Gregório XII, em julho de 1415. Explicando na altura Bento XVI que, "no Mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé", para governar "é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito". Que assumia ter-se diminuído, impedindo-o "de administrar" o ministério petrino.
"Resignou com a natureza dos grandes", diz, ao JN, o teólogo e frade Fernando Ventura, que há 20 anos trabalhou com Bento XVI, então cardeal Joseph Ratzinger, na Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano, para a qual havia sido apontado como prefeito por João Paulo II. "Traz consigo o peso de ter sido responsável pela Congregação e nunca teve boa imprensa por causa disso", ganhando a "fama de retrógrado", o que "tem que ser lido dentro do contexto da época", sublinha.
Recordando o "brilhantismo daquele homem, dos intelectuais mais brilhantes do século", resguardado numa "profunda timidez".
Inevitavelmente comparado com o Papa Francisco, numa dicotomia intelectual versus pastoral, Fernando Ventura fala numa "imagem que não é de todo justa", porque "por trás do intelectual estava um homem profundamente preocupado com a pastoral e em fazer chegar a mensagem às pessoas". Porque, vinca, "quem abre a porta ao Francisco é o Bento".
Escândalo dos abusos sexuais até aos dias de hoje
Num pontificado que ficará marcado pelo escândalo dos abusos sexuais na Igreja e acusações de encobrimento, foi o primeiro Papa a pedir perdão às vítimas de abuso, numa carta dirigida, em março de 2010, aos fiéis da Irlanda: "Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade". E que repetiria, em junho, durante uma missa na Basílica de São Pedro.
Contudo, apesar do ato de contrição inédito, Bento XVI foi criticado por não ter assumido uma posição mais firme e contundente. Como aquando do caso do fundador dos Legionários de Cristo, o mexicano Marcial Maciel que abusou sexualmente de dezenas de rapazes, que não foi submetido a um processo canónico devido "à sua idade avançada" e "frágil saúde", tendo antes sido convidado "a uma vida discreta, de oração e penitência, renunciado a todo o magistério público".
Ou quando, já neste ano, corrigiu uma declaração sobre o relatório independente de mais de mil páginas sobre abusos sexuais nas arquidioceses de Munique e Frisinga, na Alemanha, entre 1945 e 2019. Assumindo o Papa emérito, que esteve à frente da arquidiocese de Munique entre 1977 e 1982, ter participado numa reunião, em janeiro de 1980, que terá analisado o caso do padre Peter Hullermann, suspeito de pedofilia. O erro, referia-se na altura, seria "resultado de uma omissão na edição das suas declarações". Já em fevereiro, em carta dirigida aos fiéis de Munique, expressa a sua "profunda vergonha, grande dor e sincero pedido de perdão".
"Nos últimos meses de pontificado, todos os dias lhe caíam toneladas de entulho", comenta o teólogo Fernando Ventura. Como a detenção, em maio de 2012, do antigo mordomo do Papa Bento XVI, depois de a polícia do Vaticano ter encontrado no seu apartamento inúmeros documentos papais que faria chegar à imprensa. O "Vatileaks", como assim ficou conhecido, apontava para casos de corrupção, práticas de má gestão e conflitos internos no Vaticano. Ou as suspeitas de lavagem de dinheiro por parte do banco do Vaticano Instituto para as Obras de Religião, que levaram, na altura, à detenção do antigo chefe de contabilidade, monsenhor Scarano.
Sendo ainda de assinalar o polémico discurso, em 2006, na Universidade de Ratisbona, ao citar um diálogo do imperador bizantino Manuel II Paleólogo: "Mostra-me também o que Maomé trouxe de novo e encontrarás apenas coisas más e desumanas, como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava". Gerando uma onda de protestos no seio da comunidade islâmica.
De uma visão teológica progressista a conservadora
As posições contra o aborto e o casamento homossexual ou a defesa do celibato dos sacerdotes, num livro escrito a quatro mãos com o cardeal Robert Sarah e cuja assinatura o Papa emérito solicitou que fosse retirada, explicam as críticas de conservadorismo. Isto quando, enquanto teólogo, "o professor Joseph Ratzinger foi um elemento fundamental para a realização do Concílio Vaticano II, contribuindo de forma profunda para o Concílio e toda a revolução que o Concílio constituiu", explica o padre Anselmo Borges.
Como se tornou, então, num Papa conservador? "O maio de 68 atingiu também as faculdades de Teologia e a Igreja na Alemanha. Nessa altura, abandona a universidade de Tubingen e foi para Regensburg, com receio que a Igreja fosse atingida; tornou-se um conservador", explica o também teólogo, que lembra a relação com Hans Kung. "Chega a arcebispo de Munique, a cardeal, acentua-se o retrocesso da Igreja com João Paulo II, é chamado para a Congregação para a Doutrina da Fé e, aí, participa na condenação de mais de cem teólogos no Mundo", prossegue. Contribuindo Bento XVI para o "retrocesso da Igreja, mas que teve este ato corajoso e histórico de resignar". Abrindo as portas a "Francisco e a tudo o que ele significa de revolução dentro da Igreja", considera Anselmo Borges.
Voltando ao "tempo e à circunstância", frei Fernando Ventura lembra que, "mesmo assim, foi alguém que apontou para o diálogo", entendendo que a grande marca deixada por Bento XVI "foi o diálogo entre a fé e a razão, marcando absolutamente o pontificado". Como o fez, a 12 de maio de 2010, no encontro com o "mundo da Cultura", em Lisboa, unindo crentes e não crentes. "A Igreja escrevia o Papa Paulo VI deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. "A Igreja faz-se palavra, a Igreja torna-se mensagem, a Igreja faz-se diálogo", dizia então o Papa perante cerca de 1300 convidados, entre os quais o cineasta Manoel de Oliveira. Tendo como pedra basilar a busca pela verdade. "Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais" (Encíclica Caridade na Verdade, 2019).
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