Três milionários levaram, este ano, civis em passeios que vulgarizaram. Impacto do turismo espacial divide especialistas. Beneficiamos de avanços tecnológicos desenvolvidos para foguetões, mas há quem chame a atenção para a poluição que os voos implicam.
Abrir o espaço ao viajante comum é o objetivo do turismo espacial, um fenómeno com cada vez maior relevância mediática. Num ano histórico, os multimilionários Jeff Bezos, Richard Branson e Elon Musk levaram várias pessoas ao espaço em seis voos.
Há quem acredite que as viagens que ultrapassam a Linha Karman, a fronteira espacial que se localiza a 100 quilómetros da Terra, são "apenas uma face" de uma revolução mais alargada e que pode trazer uma série de benefícios que nem todos reconhecem no dia a dia. Mas há também vozes críticas que se ouvem nas mais diversas frentes.
Uma das mais recentes foi a do príncipe William, que disse, à BBC, que os empreendedores deveriam focar-se em salvar o planeta. Antes, Bill Gates considerou, no programa de televisão da CBS "The Late Late Show", que ainda há "muito que fazer na Terra". Até na área da astronomia há quem fale do fenómeno com hesitação. Como o astrofísico britânico Martin Rees que, num artigo de opinião no "The National News", afirma que "o espaço não oferece uma saída para todos os problemas da Terra", lembrando que "não existe um planeta B".
Mónica Truninger, socióloga no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde também estuda o turismo espacial, diz que os voos espaciais estão a poluir as camadas mais pristinas da atmosfera da Terra, uma vez que o aumento dos lançamentos agrava a poluição atmosférica ao ponto de agravar o buraco da camada de ozono.
A "nova moda", como refere a presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia, Maria Amélia Martins-Loução, "acarreta gastos movidos apenas pela vaidade, quando esse montante poderia ser usado para famílias no limiar da pobreza, gastos de energia de combustíveis fósseis quando há metas internacionais a cumprir e aumenta o lixo.
"É como acender charutos a notas de mil"
Além disso, as tecnologias podem ser usadas para objetivos geoestratégicos. "Não são inócuas nem apolíticas. O uso da tecnologia tem sempre um lado perverso. Podem ser colocadas ao serviço do complexo industrial militar para ações de militarização e armamento", continua Mónica Truninger.
LAZER ESTAPAFÚRDIO
"É como acender charutos a notas de mil", considera Luísa Schmidt, investigadora de Sociologia do Ambiente no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. "É um turismo de tal modo exorbitante em termos de custos que parece uma obscena brincadeira daqueles milionários. É quase uma obscenidade estar a ver cá em baixo na Terra. Não é necessário, nem é aceitável", afirma, acrescentando que a exploração do espaço deve ser feita apenas por cientistas e não como forma de lazer.
Numa altura em que um bilhete para o espaço pode custar até 500 mil dólares, a especialista acusa os milionários de criarem um novo mercado para os "hiper-ricos" e de não estarem interessados em aumentar o conhecimento. "Parece-me mais uma coisa de lazer estapafúrdico do que algo que contribua para o bem da humanidade", conclui.
O astrónomo Miguel Gonçalves acusa os críticos de terem um "pensamento demasiado populista, demasiado estreito e desconhecedor daquilo que é a tecnologia espacial". Segundo o apresentador do programa da RTP "A Última Fronteira", todos os dias, usamos objetos e técnicas que surgiram ou tiveram melhorias graças à tecnologia espacial. "Sempre que há um evento ou um veículo disruptor da área da exploração ou da tecnologia aeroespacial, traz benefícios que a sociedade em geral desconhece", explica.
Muitos sistemas de travões usados nos carros surgiram da tecnologia dos vaivéns, que também permitiu melhorar os combustíveis "mais amigos do ambiente do que há umas décadas". Da mesma forma, as tecnologias de segurança dos tripulantes poderão ter repercussão naquilo que é a segurança automóvel.
"Permite colocar satélites que indicam os locais onde ainda é possível investir e ter melhores colheitas"
Na vertente científica, a vulgarização destes voos pode permitir que, dentro das cápsulas, possam ser levadas experiências que, de outra forma, não teriam como chegar ao espaço e que podem contribuir para a área da farmacêutica e da medicina.
"ESTÁ A MATAR A FOME"
Apesar de serem "missões algo lúdicas", permitem estudar os efeitos da microgravidade no corpo de "um leque mais alargado e diversificado de pessoas do que os ultrasselecionados e saudáveis astronautas", explica Rui Moura, engenheiro geólogo e professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
Com mais lançamentos, também pode ser reforçado o sistema de satélites, fundamental para as tecnologias de comunicação terrestre e com provadas implicações científicas, como a deteção de problemas e anomalias na atmosfera ou na superfície terrestre. "Investir no espaço está a matar a fome de milhares. E a permitir colocar satélites que indicam aos povos onde está a água que pode ser extraída no subsolo, onde estão os locais onde ainda é possível investir e ter melhores colheitas", enumera.
Para Rui Moura, só com o turismo espacial é possível "tornar os voos um modelo de negócio que permita sustentar um meio mais económico de lançamento para o bem da ciência e de todos". Mónica Truninger, por seu lado, acredita que "esperar por esse desenvolvimento é demasiado arriscado e inconsciente", uma vez que a "urgência climática não dá tréguas".
Os especialistas são unânimes ao considerarem o muito que há a fazer pela Terra. Para Rui Moura, é preciso fomentar o conhecimento e arranjar soluções energéticas sustentáveis para distribuição equilibrada e socialmente justa para todos.
Luísa Schmidt, além do combate às alterações climáticas, às desigualdades e à pobreza, propõe que os milionários deveriam pagar mais impostos, para que o dinheiro fosse investido na exploração do conhecimento sobre o fundo do mar. Já Maria Amélia Martins-Loução diz ser preciso tornar mais eficiente a produção de alimento, financiar medidas de restauro ecológico de áreas degradadas e de conservação da biodiversidade e aumentar os reservatórios de dióxido de carbono.
500 mil dólares
Uma viagem suborbital pode custar 500 mil dólares. Os custos anunciados inicialmente, de 250 mil dólares, subiram em virtude da procura.
Críticas antigas
Nos lançamentos das missões Apollo, houve manifestações contra o dinheiro usado na exploração espacial.
Experiência lusa
Uma experiência científica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto vai ao espaço na New Shepard, da Blue Origin, em 2022.
Nome: Richard Branson
Data: 11 de Julho
No início deste ano, a Virgin Galactic, de Richard Branson, lançou um avião espacial até à borda do espaço por duas vezes, em maio e julho. O milionário britânico de 70 anos foi um dos tripulantes.
Nome: Jeff Bezos
Data: 20 de Julho
Em julho, a Blue Origin levou Jeff Bezos e três outras pessoas à Linha Karman. Em outubro, o foguetão fez do ator William Shatner, o capitão Kirk de "Star Trek", a pessoa mais velha a ir ao espaço.
Nome: Elon Musk
Data: 15 de Setembro
A SpaceX, de Elon Musk, voou na chamada missão "Inspiration 4" e transportou quatro astronautas amadores para a órbita, onde permaneceram durante três dias dentro da nave espacial Dragon.
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