Um homem ucraniano morreu em março às mãos das autoridades portuguesas. A gravidade do caso, que já tem acusados e julgamento marcado para 2021, levou já a várias demissões. A última deu-se esta quarta-feira: caiu a diretora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
A morte de Ihor Homenyuk, às mãos de três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), resultou de "uma situação de tortura evidente". As palavras foram proferidas recentemente pela diretora do SEF, Cristina Gatões, em março, no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa.
Ihor Homenyuk, de 40 anos, aterrou em Lisboa no dia 10 de março, com o objetivo de arranjar trabalho em Portugal, e faleceu dois dias depois, pelas 18.40 horas. Inicialmente, o óbito, declarado pelo INEM, foi atribuído a uma "paragem cardiorrespiratória presenciada após crise convulsiva". Mas a autopsia revelou outra versão: asfixia mecânica, presumivelmente decorrentes de lesões sofridas nas horas anteriores.
Um inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna implica no crime um total 12 elementos do SEF, vários seguranças privados e um enfermeiro, que poderiam ter evitado a morte de Ihor Homenyuk. Mas culpa maior foi já imputada, em despacho de acusação do Ministério Público, a três dos inspetores do SEF: Luís Silva, de 44 anos, Bruno Sousa, 42 e Duarte Laja, 47, acusados de homicídio
Isolado, algemado e agredido
Segundo a acusação, no dia 12 de março, eram 8.15 horas quando aqueles três inspetores se dirigiram à sala onde, no dia anterior, tinham deixado Homenyuk em isolamento e manietado, com "fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços", aplicada por seguranças. À entrada para a sala, um dos inspetores terá dito a uma vigilante para não registar os seus nomes.
"Hoje já nem preciso de ir ao ginásio"
Os inspetores terão então algemado as mãos do ucraniano atrás das costas e amarrado os seus cotovelos com ligaduras. Em seguida, ainda segundo a acusação, tê-lo-ão atingido em todo o corpo com um "número indeterminado de socos e pontapés". Além sido, Ihor Homenyuk também foi espancado com bastão extensível, apurou o MP.
Os três inspetores saíram da sala 20 minutos depois, abandonando o cidadão ucraniano deitado de barriga para baixo, algemado e com os pés atados por ligaduras". "Agora, ele está sossegado", terá comentado, à saída, um dos inspetores. "Hoje, já nem preciso de ir ao ginásio", gracejou outro.
Sete horas depois, quando outros dois entraram na sala, com o objetivo de fazer o ucraniano embarcar num voo com destino a Istambul, na Turquia, a vítima já não reagiu. O óbito foi declarado no local. . A autópsia revela "morte lenta e agonizante", com costelas partidas e progressiva falência do aparelho respiratório. Apresentava ferimentos na face, tronco e membros, e hemorragias. Também tinha lesões profundas nos pulsos.
Depois de a imprensa noticiar o caso, o diretor e o subdiretor de Fronteiras de Lisboa demitiram-se dos seus cargos, mas a dirigente máxima do SEF, Cristina Gatões, manteve-se no cargo até esta quarta-feira.
Cronologia de um caso chocante
10 de março 2020
Ihor Homenyuk, cidadão ucraniano de 40 anos, vindo da Turquia, tenta entrar em Portugal de forma ilegal. Fica dois dias detido no aeroporto de Lisboa, sendo posteriormente revelada a sua morte.
14 de março
No dia da autópsia, e após informação do médico-legista sobre as condições estranhas da morte de Ihor (lê-se "Igor"), a PJ, que já estava a investigar, recebe uma denúncia anónima. Com base em inquéritos posteriores, três agentes do SEF, Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva, são colocados em prisão domiciliária.
30 de março
A Inspeção-Geral da Administração Interna instaura processos disciplinares ao diretor e subdiretor de Fronteiras de Lisboa, ao coordenador do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto, assim como aos três inspetores do SEF, que têm agora julgamento marcado para 10 de janeiro de 2021.
8 de abril
O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, é ouvido no Parlamento, onde afirma que houve "negligência grosseira e encobrimento gravíssimo" na morte de Ihor Homenyuk. Anuncia também o encerramento e restruturação do Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, que passa a ser apenas utilizado para cidadãos com recusa de entrada em Portugal, deixando de aí ser alojados os requerentes de asilo. Muitas das situações de estada prolongada neste espaço deviam-se ao alojamento de requerentes de asilo.
1 de agosto
O Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa, entretanto remodelado, reabre com um novo regulamento. As camaratas estão convertidas em quartos individuais e cada uma possui agora um botão de pânico. Continua o coro de críticas à gestão do caso. O novo regulamento do Centro só é distribuído, em comunicação interna para todas as unidades orgânicas do SEF, no dia 26 de novembro.
18 de agosto
A viúva do cidadão ucraniano, Oksana Homenyuk, pede 230 mil euros de indemnização adiantada ao Estado Português pela morte de Ihor, conforme está previsto na lei 104/2009.
30 de setembro
O Ministério Público acusa formalmente os três inspetores do SEF do homicídio qualificado de Ihor Homenyuk. São entretanto revelados outros testemunhos que acusam a prática continuada de agressões e outras ilegalidades no Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa.
7 de outubro
O ministro Eduardo Cabrita envia para o Ministério Público as conclusões do inquérito da Inspeção-Geral da Admnistração Interna, que concluiu pela instauração de 12 processos disciplinares. Ou seja, além dos três inspetores já formalmente acusados, são implicados outros nove inspetores que, por "ação ou omissão", terão contribuído para a morte do cidadão ucraniano.
4 de outubro
É assinado um protocolo entre o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados, para garantir assistência jurídica do Estado, em todos os aeroportos, a cidadãos estrangeiros a quem seja recusada a entrada em território nacional.
30 de outubro
O Governo determina a realização de uma auditoria aos procedimentos internos do SEF, visando aa sua avaliação e correção.
16 de novembro
A diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, admite que a morte do cidadão ucraniano resultou de "uma situação de tortura evidente", conforme concluíra a investigação da PJ. O caso tinha já conduzido à demissão do diretor e do subdiretor de Fronteiras do Aeroporto de Lisboa. Mas não estavam ainda apuradas todas as responsabilidades.
18 de novembro
PSD e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira apresentam requerimento a exigir a audição do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da diretora do SEF. O PS junta mais um pedido de audição à Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. Os socialistas dizem estar em causa conduta atentatória dos direitos humanos, considerando ser necessário ativar o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, que funciona na Provedoria.
1 de dezembro
A presidente da bancada parlamentar socialista, Ana Catarina Mendes, garante ao DN que o PS vai votar a favor daqueles requerimentos e declara: "Uma coisa garanto, não me calarei!".
8 de dezembro
O deputado Duarte Marques, do PSD, faz um ultimato a Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, exigindo-lhe que mude já a direção do SEF ou abandone o Governo, demitindo-se. Nove meses após a morte de Ihor Homenyuk, nem o SEF nem qualquer representante do Estado português terá contactado ainda a família do ucraniano, diz o advogado do caso, Gaspar Schwalbach, citado pelo "Público".
9 de dezembro
Cristina Gatões, diretora do SEF, demite-se ao final da manhã. Oficialmente, a sua saída é enquadrada numa redefinição do "exercício das funções policiais relativas à gestão de fronteiras e ao combate às redes de tráfico humano". A direção do organismo fica a cargo dos diretores nacionais adjuntos Luís do Rosário Barão e Fernando Parreiral da Silva.
Sem comentários:
Enviar um comentário